quinta-feira, 20 de maio de 2010

Num domingo de inverno

Se bem me lembro, eu estava deitado, abraçado à uma garota que acabara de conhecer em um bar apenas alguns dias antes. Em silêncio, assistíamos o filme Lisbela e o Prisioneiro, as luzes da sala apagadas, o dia entardecendo lá fora... Selton Mello fazia suas macaquices e a atriz “Não Sei O Quê” Falabella tinha no rosto um sorriso que amoleceria o mais duro dos corações.

Eu tinha telefonado para minha companhia de manhã, como quem não quer nada, perguntando à ela quais seriam seus planos para o fim-de-tarde. Ela ficou feliz, me convidou para visitá-la na hora que quisesse e marcamos um encontro às quatro em seu apartamento, no centro.

Foi assim que a cena se formou. Cheguei no local com minha costumeira pontualidade [cinco minutos adiantado], fui calorosamente recebido com um tímido toque de lábios, abraços longos e apertados... Após alguns minutos a proposta veio e nos instalamos diante daquela “caixa quadrada” a qual eu costumo chamar carinhosamente de televisão. Depois de certo tempo, um pouco ao longe, pude perceber o som da banda municipal que insistia em fazer-se presente, lá no coreto da praça, há alguns quarteirões de distância do prédio onde estávamos. Era domingo, dia em que a cidade quebrava um pouco de sua apatia com esse tipo de evento aberto ao público... Mas se eles não tocassem mais alto ou um de nós dois não se levantasse para abaixar ou aumentar o volume da televisão, a coisa continuaria assim. E estar muito confortável sob as cobertas não me motivou o suficiente para pensar em mudar a situação... A garota também não parecia querer reclamar de nada.

Enfim, não importaria muito o que estivéssemos fazendo pois qualquer coisa seria um pretexto para colocar nossos corpos e seus desejos mais próximos um do outro: filme, música, um copo de qualquer bebida ou o simples frio lá fora teriam igual conotação.

Ali, com as pernas entrelaçadas, as mãos acariciando-se sugestivamente, o calor de ambos tornando-se um só, as respirações cada vez mais irregulares e todos os instintos à flor da pele, o óbvio era inevitável: fosse no filme ou na vida real dentro daquele ambiente, alguém acabaria fazendo aquilo que todo mundo gostaria de ter o tempo todo, se pudesse. Ou se pelo menos agüentasse...

Mas a vida é ordinária, inesperada e uma piadista maliciosa cheia de surpresas. Porque quanto mais óbvio algo parece, maior nosso descuido e desatenção sobre os imprevistos que ela traz. E essa falsa sensação de clareza e conhecimento acaba nos colocando rapidamente no papel daquele que é “pego com as calças curtas”.

Quando Marco Nanini, num ímpeto de ódio e rancor característicos de seu personagem, prostrou Selton Mello de joelhos em frente ao bar, apontando sua arma e dando-lhe a sentença máxima [a qual, eu sabia muito bem, não seria executada] a frase “Já volto...” caiu nos meus ouvidos.

Do aconchego das cobertas a garota emergiu, suave como uma bailarina mas de uma curiosa determinação. Como se fosse buscar algo que tivesse esquecido ou simplesmente ido ao banheiro... Não fazia muita diferença, desde que eu não tivesse que me levantar também ou a moça em questão começasse a demorar demais...

E ela demorou.

Demorou eternos e silenciosos vinte minutos. “Deve estar no banheiro”, comecei a pensar. Continuei assistindo o filme. Àquela altura o mocinho já estava preso na delegacia e jurado de morte pelo bandido, a mocinha na igreja casando-se com outro paspalho e a trilha sonora das mais dramáticas possíveis.

Mesmo quando tudo deu uma reviravolta e o destino começou a sorrir novamente para Lisbela, ainda assim minha “anfitriã” não voltara do que quer que estivesse fazendo. Fiquei preocupado e decidi bisbilhotar,ainda assim cheio de expectativas sobre o filme. Afinal, restavam com certeza meia hora até o fim e Lisbela ainda não tinha aparecido nua. A esperança é sempre a última morrer...

Dei umas voltas pela sala, ganhando preciosos segundos, olhando para o relógio, pensando em fumar um cigarro ou mexendo nos porta-retratos da mesa. Ao mesmo tempo tentava auscultar algum barulho estranho, um sinal de que ela estivesse pelo menos viva ou ocupada com algo. Nada.

Aquilo começou a ficar estranho e curiosamente sombrio. Ninguém some assim, repentinamente, por um bom motivo. A razão de tanta demora, por dedução, deveria ser ruim. Mas é como eu disse anteriormente. Quando você realmente acredita que está pronto para praticamente tudo, que conhece os mandos e desmandos da vida, acontece algo para lhe mostrar a simples verdade diante de seus olhos: a gente não sabe de nada.

“Ruim” como definição não chegava nem perto da cena que se apresentaria diante de mim.

Depois de entrar sorrateiramente no quarto, sem acender as luzes, e constatar que não havia ninguém, fui até o banheiro “na ponta dos pés”. A luz passava por debaixo da porta. Encostei a cabeça de lado e tentei identificar algum som. Água corrente, barulho de papel amassado, descarga, choros e soluços... Qualquer sinal me tranqüilizaria. Nenhum.

Esperei. Continuei esperando até o ponto de não poder esperar mais. O que devo confessar ocorreu de forma rápida, tendo em vista o ariano impaciente que sou...

Bati na porta e nada. Bati de novo e nada de novo. Chamei pelo nome e nada. Perguntei se estava tudo bem e o resultado foi, incrivelmente, nada. Já tinha motivos suficientes para arrombar “o obstáculo” não estivesse este destrancado.

Permitam-me fazer uma pausa agora. Em momentos cruciais como esse, em que o mistério há de ser desvendado e a verdade finalmente coloca-se diante de nossos treinados e enevoados olhos, deve-se colocar as coisas em perspectiva. Por questões de educação e etiqueta, acredito eu. Mas porque também é de meu feitio...

Saibam todos aqueles que pregam o entendimento pleno sobre as peripécias e caprichos do destino que a coisa não é bem assim. O absurdo, inesperado, o acaso e, não menos importante, a ironia, podem ser um “grupinho de amigos” muito mais inventivo do que costumamos imaginar.

Na verdade, a frase “estar sob controle de uma situação” me soa com um ar de ingenuidade, [para não dizer ignorância] tão grande que acabo por interpretá-la muito mais como mecanismo de defesa do que qualquer outra coisa. O fato é, a despeito de nossa vontade, não são necessários mais do que alguns segundos para que o papel se inverta e a “situação” assuma o controle sobre nós.

E lá estava eu, “sob controle”, pleno de minhas capacidades e auto-suficiência, confiante e altivo, para vê-lo ser tomado de mim num estalar de dedos. Ou no abrir de uma porta.

Não me lembro ao certo qual foi a primeira coisa que disse quando entrei correndo pelo banheiro mas, com certeza, era algo muito parecido com “puta que o pariu”. E com toda razão. Não é todo dia que se vê algo assim.

Principalmente depois de me afastar do filme momentos antes da tal Falabella tirar a roupa [posteriormente minha frustração seria ainda maior ao perceber que, assim que os créditos começassem a subir na tela, a mocinha era realmente virtuosa, porém tímida demais para se dar a esse trabalho].

De início senti um certo nojo, que aos poucos transmutou-se em pânico para, finalmente, instaurar-se como preocupação. Não sabia se pegava em meus braços, tentava conversar ou berrava feito doido varrido, se saía em busca de ajuda ou para não voltar nunca mais, se chorava e até mesmo ria perante a comicidade da tragédia.

Assim, nesse estado, com o coração a galopar incontrolável, só uma coisa me passava pela cabeça: não havia mais ninguém ali há não ser nós dois e, definitivamente, sobraria para mim buscar a solução do problema.

“Vá com Deus...!!! E seja feliiiizzz!!!” clamava emocionado o pai de Lisbela no aparelho ao qual gosto de me referir desdenhosamente como “televisão”. Bom, diz-se do herói, corajoso e nobremente humilde, aquele que simplesmente fez o que deveria ter sido feito no momento necessário. A tarefa não me agradava mas, não era como se o tempo e a maré estivessem ao meu favor...

Então eu fui, com Deus e tudo, como manda o figurino [ou o pai de Lisbela]. E não pensem que me senti mais humildemente nobre e encorajado por causa disso. Fui é pensando que o “herói” de heróico não tem nada e não passa de um tremendo azarado que não tinha outra escolha na hora em que “a ponte explodiu”, isso sim!

E ao contrário do que se imagina, fazer a coisa certa não nos cobre de louros e aplausos. É, por muitas vezes, uma missão inglória. Nos faz refletir sobre si mesmo e os outros, questionando e duvidando sobre nossas crenças, atribuindo um aspecto de banalidade aos nossos valores. Que no final das contas não deixam de ser muito mais do que isso. Banais.

O que compensa no final é sobreviver à esse tipo de imprevisto, frisando aqui a importância do termo “sobreviver”. Às vezes é o melhor que se pode fazer mesmo.

Afinal compreensão, percepção, experiência e [Deus me livre!] evolução podem ser finalidades ou objetivos muito úteis e razoáveis. Mas não são muito mais do que termos utilizados para definir algumas coisas que a gente teima em explicar, mesmo sabendo que para a maioria delas não há explicação. Pelo menos não uma definitiva...

Mas isso é para depois. Sem querer já entrei num lado da discussão que foge completamente à descrição objetiva do meu domingo que, não falhando minha intuição, seria memorável.

Acontece que no exato momento em que todo meu plano de ação estava sendo executado, percebi na sala a ausência de diálogos e a trilha sonora do filme prosseguindo solitária e insistente. Nem me lembro da música. Só sei que não gostei. Principalmente porque isso indicava a chegada de um final que não pude testemunhar...

Voltei e deparei-me com letras, nomes e funções de pessoas, que eu sequer tinha ouvido falar, cruzando a tela num movimento vertical, de baixo para cima. Outra eterna dúvida minha seria porque os créditos nunca começam no sentido contrário? De cima para baixo...?

Desconsolado e frustrado, senti uma mão tocar-me o ombro. O odor que vinha dela era suavemente feminino, macio ao ser aspirado e me fazia pensar numa pena colorida flutuando.

“Obrigada... Você foi muito especial” foi a frase que me pousou aos ouvidos dessa vez. E a aceitei sem realmente compreender o porquê. Sem achar que merecia, ignorando qualquer mérito e negando qualquer responsabilidade...

Nos beijamos rápida e suavemente, um simples encontro de bocas. Sorri e ela me sorriu em retribuição. Parecia feliz ou talvez mais calma...

A porta da rua, serventia da casa, já estava aberta. Lá fora fazia frio e era tarde, quase meia-noite. Minha intenção seria acordar cedo no dia seguinte. Decidi ir-me embora. Afinal, num inverno cinzento e rigoroso como aquele, só ficaria acordado até mais tarde por um bom motivo. Como “bom motivo” entenda-se aquilo que todo mundo gostaria de ter o tempo todo, se pudesse. Ou se pelo menos agüentasse...

Guilherme Johnston

Um comentário:

  1. nossa que domingo heim ....
    mas a curiosidade nãome deixa nesse momento ..
    o que acotneceu, mas como depois do contecido, ela mandou você embora ?? como assim ... eita vda complicada !!!

    ResponderExcluir