sábado, 1 de maio de 2010

Última quinta-feira...

Hoje é quinta-feira, treze de janeiro. São duas e quarenta e três da madrugada. Eu deveria estar com sono...

Mas não estou.

A sala é pequena, as paredes são pintadas de cor bege e marrom. Não há nenhum móvel além de uma mesa de metal e uma cadeira, na qual estou sentado. Tem um cara encostado perto da porta, um pouco pra esquerda à minha frente. Na cintura dele uma pistola, não consigo imaginar qual o calibre. Ouço o barulho de passos e vozes no corredor, mas não entendo nada do que dizem. A cada som novo lá fora fico mais e mais nervoso... A porta abre e um homem entra carregando nas mãos algumas pastas... Ele também carrega uma pistola, só que presa sob o braço esquerdo ao invés da cintura. O velcro de segurança está solto. Essa foi a primeira coisa que me chamou a atenção.
Ao mesmo tempo em que joga as pastas sobre a mesa começa a falar comigo rapidamente, como se estivesse com pressa de chegar logo ao final disso tudo. Com o corpo curvado de frente em minha direção, apoiado com as duas mãos sobre a mesa, diz que estou encrencado até o pescoço, que vai ser difícil resolver a situação e que é melhor eu cooperar. Depois de olhar impaciente para mim por alguns segundos, me pergunta como é que fui fazer uma merda dessas... Continuo sem dizer uma palavra, mantendo o olhar fixo no dele. Isso não parece agradá-lo de maneira alguma até onde posso perceber.
O outro encostado perto da porta nos deixa a sós. Ao vê-lo sair notei um sorriso em seu rosto. Procuro em vão descobrir o que teria graça agora. A porta se fecha novamente e a sala fica ainda menor...
Agora somos nós dois. Eu, mudo, e o homem que me contou tudo que ambos já sabíamos. Ele coloca-se totalmente de pé, dá a volta na sala e pára atrás de mim, um pouco para a direita. Pergunta-me mais uma vez sobre minha cooperação. Permaneço em silêncio, assustado demais para dar alguma resposta. Então fala algo sobre confissão, assinar papéis, arrepender-se, compreensão, advogados, corte, julgamento, prisão... Penso em falar alguma coisa, mas minha voz simplesmente parece estar desligada. Sua irritação aumenta e passos começam a ecoar pela sala, frases e gesticulações misturam-se numa cena cada vez mais apavorante... A tensão no ambiente é tão palpável que posso sentir seu peso em toda musculatura. Minha nuca tensiona e tento disfarçar o melhor que posso. Meus lábios se movem. Não posso chorar. Se o fizer estou perdido. De repente um soco na mesa, seguido de um dedo encostando-se a meu rosto. Há quanto tempo estou aqui? Uma hora? Duas? A vida inteira? Com o canto do olho esquerdo vejo um punho cerrado, de pele clara e os nós dos dedos levemente calejados, pendendo para baixo rente a uma perna que não é a minha. A cor da calça é azul marinho e os detalhes da costura, amarelos. Não que isso importe agora... Já nem escuto mais o que me é dito. Só o punho me chama a atenção. Por que esse desgraçado não me deixa ir embora?
Um súbito silêncio interrompe o transe. Percebo dois olhos fixos em mim e me dou conta do que vai acontecer. Não há como evitar isso por mais que eu pense. E parece que sou o único a pensar por aqui no momento. E no mesmo instante em que uma mão me segura pelo colarinho a outra atinge meu maxilar. A dor é grande, porém inferior à raiva que me deixa engasgado. Sinto lágrimas no rosto, os dentes amortecidos e um gosto de sangue na boca. Começo a suar mais do que antes. Minha respiração está ofegante. O coração parece querer explodir. Mesmo assim enxergo a cena toda com uma clareza impressionante. Cada detalhe fica cada vez mais vívido... O segundo soco acerta em cheio algum dente que se desprende por completo com a força do impacto. Já ouvi falar muito sobre espancamentos, torturas e outras coisas do gênero. Mas filmes e documentários não descrevem nem de perto o que é uma experiência desse tipo. O terceiro soco quebra meu nariz. Sempre o achei um pouco grande e sabia que um dia isso me causaria problemas. Pelo que posso entender esse dia chegou. Desesperado tento me proteger um pouco. O que de nada adianta e só piora tudo ainda mais. A cadeira some debaixo de mim e estou no chão. No quinto chute páro de contar. Escondo o rosto com as mãos cruzadas, mas o estômago está completamente descoberto. Quanto mais tento respirar, mais sólido fica o ar à minha volta. Ainda assim percebo o velcro de segurança solto no coldre da pistola...
Duas mãos me levantam pelo colarinho, já bem esgarçado agora. Lembro de quando a empregada lá em casa passava minhas roupas. Nunca me fez muita diferença usar roupa passada ou amassada. Mas sei que a mãe gostava de me ver bem vestido e por isso não criava caso. Escuto alguém falando comigo. Será o mesmo cara que entrou falando e jogando as pastas na mesa? Ou o que estava encostado na parede perto da porta? Minha mão direita se mexe. Meus olhos abrem. Não consigo me lembrar de quando os fechei. Vejo uma expressão de satisfação ou vitória diante de mim. Não sei ao certo. Um homem, ainda me segurando pelo colarinho, começa a dizer algo, mas pára ao encontrar seu olhar com o meu. Eu sorrio e sem que ele perceba movo minha mão rapidamente em direção à pistola. Ele nem percebe quando já está com o cano encostado em seu queixo. Seus lábios tremem. Será que quer dizer algo? Será que vale a pena ouvir? Empurro-o para trás com a arma. Meu rosto está em branco. Não há saída. Não há reviravolta. Não há vitória... O mundo todo parece tão calmo agora. O silêncio tão aconchegante. Ficamos assim, os dois parados, por alguns segundos. Longos segundos. Preciosos segundos.

E puxo o gatilho.

Tenho nove balas no pente. Uma na agulha. O barulho deve ter alertado pelo menos umas vinte pessoas. Metade delas provavelmente armada. Muita gente e pouca bala. Vou até a porta e a deixo encostada, sem trancar. Apóio-me com as costas na parede e aponto para a entrada da sala. Ouço passos vindo pelo corredor, um monte deles... Alguém lá fora grita ordenando que abram a porta...

Respondo calmamente a primeira coisa que me vem à cabeça.

“Pode entrar filho-da-puta...”.

Guilherme Johnston

O Jardim

Há quem note neste jardim
Possuidor das mais belas flores
Imensidão de coruscantes cores
De uma beleza que não vê seu fim

Há quem veja nessa imensidão
De formas e tamanhos diversos
Esse oceano de odores dispersos
Bailar ao vento em suave redenção

Nesse vergel vê-se o Mundo em sua essência
Donde caem sementes de singela dormência
A erguer-se em pétalas de alegria e sofrimento
Germinando em lágrimas seus novos rebentos

Pois a vida ali é de dores e alentos
Flutuando pelo ar como dentes-de-leão
Levando ao longe alegrias e tormentos
Enfeitando a tarde de tristeza e paixão

Nesse jardim suntuoso a brisa corre
Açoitando a tudo com zeloso carinho
Entoando música àquele que morre
Suspirando bom-dia ao que nasce no ninho

Vê-se ao longe o sonoro revoar de amores
Que vêm e vão em crescente velocidade
Alvoroçando-se nas torrentes de saudade
Chamuscando o horizonte com infinitas dores

É assim que o percebo, meu doce jardim
Que não é grande nem pequeno, mas é o que é
Um eterno alvorecer de tudo aquilo que já vivi
O despertar de todas as almas que habitam em mim

Por fim, distantes de tudo, reconheço
O amarelo e vermelho nas planícies, a brincar
Fazendo do Sol um algoz feliz e confesso
Pois me queimam o rosto em deliciosa cumplicidade...

... e eu, impotente em felicidade...

... me ponho a chorar.

Guilherme Johnston

sexta-feira, 30 de abril de 2010

Esse quê...

Há um quê em mim...

Que chora feliz
E sorri tristemente
De sofrimento e alegria
Solidão e paixão

Há um quê em mim...

Que é de dor e alívio
Uma incerta apatia
Da mais franca alegria
De um infinito pesar

Há um quê em mim...

Que é puro desejo
Uma sina que almejo
Essa intensa agonia
De sofrer e amar

Há um quê em mim...

Que é sempre ausente, vazio
Esse não-ser insistente, arredio
Me empurrando sempre adiante
Em busca de um sonho distante

Há um quê em mim...

Que vive a certeza do dia
E morre na dúvida da noite
Procurando mistério e magia
Encontrando silêncio e açoite

Há um quê em mim...

E não sei explicá-lo direito
Que aperta-me forte o peito
Toda vez que a vejo passar

E ela sorrindo não vê
[a verdade]
Essa coisa me consumindo
Uma imensa saudade...

[...sei lá eu do quê]

Guilherme Johnston

Pretenso Saber

Eu sou muito
Mas permaneço um só
Em minha vida de noites claras
Ora sou densa lama, ora sou triste pó

Entrego-me ao tudo
Mas abraço a simplicidade do nada
Meu discurso é vasto, terno, mudo...
E assim sigo errante essa linda jornada

Possuo destino certo
Mesmo fadado à sina de errar
E se o perfeito parece sempre perto
Ainda assim me acena [insistente] esse irresistível falhar

Nos meus abraços, sou todos
No meu coração já fui muito ninguém...
Ainda assim, a despeito da dureza do tempo
O amor é quem fez de mim alguém...

E ele mesmo, o tempo
Em sua indescritível razão de ser
Causou-me profundas e dolorosas feridas
Mas adoçou infinitamente o meu viver

O que guardo comigo, agora
Foi cultivado num complexo antes
Na esperança de um ensolarado depois

E a cada vez que minha alma se fecha, chora...
Singrando mares solitários, distantes...
Percebo que nunca sou um só...
[Sou no mínimo Dois]

E se faço o que faço
Ou digo o que digo...

Em parte é mérito meu
A outra precisa ser desvendada

Há quem levante o braço
E discorde comigo...

Ao menos, criei alegria com o que o Mundo me deu
A tristeza me foi sendo empurrada...

E me traga o dia um espinho afiado
Ou uma lembrança preciosa e querida...
Sempre me resta esse confortante saber
De que meu caminho precisa ser trilhado...

E se o percorro ora ileso, ora machucado

Bem, meu amigo, isso...

[...É a vida].

Guilherme Johnston