sábado, 11 de setembro de 2010

Última visita

Meus pés doem... Mesmo usando sapatos, posso sentir cada pedrinha solta na velha estrada de terra, que outrora não era nada mais do que isso, uma velha e inofensiva estrada. Sinto pequenas pontadas na sola, subindo pelo tornozelo, chegando até a coluna, cada um delas lembrando-me do número de anos que já vivi. É difícil manter o corpo firme, por mais que o apoio do caniço me ajude a seguir em frente. Paro por alguns instantes, apóio a mão esquerda num muro próximo...

Não me lembro deste caminho ser tão longo.

Pensando bem, nunca imaginei que no futuro todas as distâncias seriam exatamente assim, tão distantes...

Depois de tomar fôlego continuo minha caminhada. À direita vejo um portão feito de metal, já bem velho e enferrujado. Lembro-me de uns três cães que viviam encostados do lado de dentro dele. Toda vez que passava por aqui era saudado com um coro de latidos. Hoje só o silêncio me abana um rabo que não consigo ver. As janelas e porta da casa estão fechadas, portanto de nada adianta bater palmas. Não há ninguém para visitar, botar o papo em dia, contar novidades que não aconteceram. Aliás, nada de novo tem acontecido mesmo. Exceto essa dor nas costas que insiste em dar seu alô, toda vez que me meto a singrar rumos que certamente não seriam recomendados pelo médico...

Mais adiante, o que antes seria um suave aclive, me desafia ironicamente, como se fosse uma imponente colina ou morro. Forço um sorriso e digo a mim mesmo que vai ser sopa dar os próximos passos. Claro, a coisa não vai ser tão fácil assim... Meu corpo mudou tanto com o passar do tempo que nem sei dizer se estou acima ou abaixo do peso. Não que isso faça diferença já que, não importa qual seja o caso, pernas e ombros se cansam até quando visto roupas mais quentes durante o inverno. E tem feito frio nesse ano. Muito. Essa é a razão para essas penosas e pesadas calças que estou vestindo agora.

Ofegante, mas sem perder o orgulho, vejo logo ali, à esquerda, a rua que procuro.

É uma viela pequena, não dá pra passar nem um carro, apenas pessoas a pé ou de bicicleta. E pela altura do mato percebo que ninguém a percorreu pelos últimos anos, no mínimo. Quando era jovem gostava de andar por ela de braços abertos, tocando os dois muros que a delimitam com as pontas dos dedos, sentindo cada saliência do cimento completamente infestado de ervas daninhas, que de algum modo encontravam um meio de escalar por suas frestas. Lembro-me que de tempos em tempos alguém – não sei quem – limpava os dois lados, só de teimosia talvez, lutando contra uma força natural sempre a ser barrada, mas que jamais cessava de avançar. Aliás, que nunca cessou. Quando a alcanço, noto que as plantas ocultaram completamente qualquer sinal de tijolo, massa corrida ou ferragem... Como um cobertor verde que aumentou mais e mais após milhares de alvoreceres e noites estreladas.

Dando passos curtos, sigo cautelosamente para não tropeçar em nenhum galho ou raiz. Com a ponta do caniço, busco algum buraco sem senso moral, ou misericórdia, pronto para me causar uma torção. Depois de certo ponto na vida nunca se é prevenido demais. O Sol brilha, mas as copas das árvores bloqueiam uma luz que hoje em dia tem utilidade vital para mim, já que meus olhos não funcionam como antigamente e insistem em embaçar todos os destinos que meu nariz aponta.

Ao fim da viela há um terreno. Quatro casas foram construídas nele, por uma família que não me pôs nesse mundo, mas bem que eu gostaria ter sido desse jeito. A maior delas, no centro da propriedade, tem dois andares e é de uma imponência encantadora.

Mesmo assim, as três à sua volta não são menos graciosas por serem menores. Cada uma tem sua característica própria, cada uma possui seu charme... Como possuíam as pessoas que as habitaram um dia, num passado longínquo e saudoso. Vejo paredes que eram de um branco límpido, agora desbotado pela chuva, sol, poeira, vento e outras inclemências de um tempo que insiste em não parar. Nem todas as portas estão no lugar. Algumas cederam sozinhas, outras, pelo estado das dobradiças, parecem ter sido arrancadas à força. Alguns vidros quebrados aqui e ali. Provavelmente frutos duma invasão que jamais foi notada. Gente que não tinha para onde ir e veio para onde não deveria ter vindo, mas isso não importa. O lugar todo está vazio.

Dou a volta pela casa grande, até chegar à que mais me interessa. É por ela que estou aqui. Em pé, e me esforçando para manter-me assim, observo a imponência do xadrez no mármore da varanda, tão elegante e ao mesmo tempo simples, como o homem que o assentou há incontáveis anos atrás. O banco de madeira, no qual arrisquei acordes e novas teorias por tantas vezes, ainda me parece um convite a uma tarde de risadas e novas amizades. Porém os velhos amigos já partiram. E meus pulmões não permitem que eu fale o suficiente para encantar novos ouvidos...

A porta da frente está entreaberta. De fora percebo que alguns raios de luz invadem timidamente o interior da casa, o que me dá a impressão de dar-lhe um pouco de vida... Porém decido não entrar. A vida em si não acontece mais ali. Restou apenas esse registro arquitetônico, uma morada onde não mora mais ninguém. Uma casa que não é casa, nem abrigo ou refúgio. O que percebo é apenas uma estrutura esquadrinhada e aprumada, que guarda dentro de si um muitas histórias. E subitamente me sinto feliz por ter participado de um bocado delas...

Dou alguns passos e sento-me calmamente no velho banco, sem pressa, apoiado contra a parede. Tento me recordar de quantas vezes vivi essa cena. Ali, admirando a vista para o jardim, repleto de bananeiras, bromélias, flores e pés de acerola... Lembro-me de muitas vozes, cada uma com seu timbre, rindo ou chorando comigo, fazendo perguntas e revelando mistérios. Às vezes simplesmente contando uma fofoca ou piada, sei lá... Já me peguei tantas vezes bêbado aqui, noutras somente derramei lágrimas ou disse coisas pesarosas. E numas tantas apenas me diverti até acreditar, piamente, que a vida sempre foi apenas isso, uma bela e interminável farra.

E talvez ela tenha sido isso mesmo, no fim das contas...

Uma joaninha pousa em meu joelho, me distraindo. Eu a deixo ali, por alguns segundos, depois a espanto. Sempre gostei da natureza, mas, tenho que admitir, insetos me incomodam. Quando ergo a cabeça novamente sinto minha vista mais turva do que de costume. Não consigo discernir bem as linhas entre o colorido da mata e o quintal da casa. Um zumbido estranho começa a aumentar em meus ouvidos... Ergo minhas mãos e vejo apenas dois vultos. Tenho algumas marcas no polegar direito, conseqüentes de uma alergia que nunca me matou, mas incomodou à beça por muito tempo. Tento visualizá-las sem sucesso.

Sinto uma pontada na coluna. Não, na coluna não, pelas costas todas... Minha garganta fica seca. Tudo bem, um simples gole de cerveja resolve isso. Talvez até fume um cigarro. Vou fazer isso assim que chegar a minha casa. Que, aliás, fica onde mesmo?

Engraçado como as coisas são. Você passa toda sua breve – ou longa? – existência levando o dia-a-dia com a maior naturalidade e, de repente, respirar torna-se uma peripécia. Não que isso seja um obstáculo agora, pois nem que eu queira vou conseguir me levantar daqui.

Sabendo disso, olho para o lado e digo a seu Tonico “olá”, como se fosse a coisa mais normal do mundo.

Ele parece tão calmo. E sempre é bom vê-lo com esse sorriso sincero estampado no rosto, tão característico dele... Como de costume, pergunto sobre as pescarias, se o mar vai virar ou que esperar do clima durante o fim-de-semana. E recebo todas as respostas com uma calma paternal que só poderia ser vista em alguém como seu Tonico, invariavelmente atencioso e educado.

“Os meninos me pediram para vir te buscar. Estão todos no bar, jogando sinuca e carteado. O Nelson separou uma cerveja especialmente para você e o espera na mesa perto do orelhão. Disse que essa é só de vocês dois, pra comemorar... Melhor não demorarmos muito”, me disse sem pressa alguma.
“Claro, claro... A propósito, a dona Ana está bem?” perguntei com genuína preocupação e zelo.
“Sim, muito bem, obrigado por perguntar. Ela e o Daniel foram buscar algumas coisas para o almoço de hoje. Vai sair um pouco fora de hora, obviamente, mas vocês jovens estão acostumados a almoçar mais tarde não?”
“É verdade, é verdade... Qualquer horário está bom para mim, nunca tive muito apetite mesmo. Já comentei com o senhor que era gordo quando criança? Pois é, fui sim. Depois emagreci quando tinha catorze anos. Nunca mais fui de comer muito não... Enfim, o Daniel também está aqui? Ele desceu para Ubatuba?”
“Sim, ele está aqui. Aliás, estamos todos aqui. Todos mesmo rapaz. Você vai ficar surpreso com a quantidade de amigos que se reuniu lá no bar hoje. Olha, vai ser uma festança...”
“Que ótimo não? É difícil conseguir juntar todos no mesmo lugar com frequência. Já faz muito tempo desde a última vez que vi qualquer um deles. Bom, melhor irmos então. Por favor, depois do senhor...”

Levantamos os dois ao mesmo tempo. Ajeito minha bermuda e deixo a luz do Sol aquecer meu peito nu. Sinto as solas firmes no chão e encolho meus dedos dos pés, sujando-os de terra propositalmente. Sempre gostei de andar por aí assim, sem camiseta e descalço. Ainda bem que é verão... Caminhamos lado a lado, para longe da varanda.

Vou tão animado para minha festa que nem percebo o senhor que deixamos para trás, de cabeça baixa, inerte, fragilmente equilibrado no banco onde contei e ouvi tantas histórias.

Paro por um instante, e me viro em sua direção. Contemplo-o por um breve momento, sentindo-me agradecido, sem entender ao certo por que.

Depois volto a seguir seu Tonico. Eu é que não vou deixar meus amigos esperando...

Guilherme Johnston

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