sábado, 11 de setembro de 2010

Contos de uma vida...

Gentilmente, o pequeno bote deslizava sobre a superfície da água, e o único som que se podia ouvir era o da proa, encontrando-se com a ondulação vinda das margens. Envolta em uma túnica preta, uma mulher e dois pequenos homens, de pele escura, aguardavam no meio da bruma, pacientemente. Não era possível enxergar nada muito além dos limites da embarcação e os únicos sinais de que aquele lugar ainda fazia parte do mundo, de alguma maneira, eram os sons distantes de pássaros que habitavam as florestas das redondezas. Ocasionalmente alguns deles passavam tão perto do barco que, mesmo sem serem vistos, podiam ser pressentidos, como se somente suas essências e não seus corpos existissem. “É assim que eles são. Eternos em sua energia e temporários em seus frágeis organismos”, pensou a moça.

E nesse mesmo instante, de algum lugar distante na neblina, o relincho de um cavalo se aproximando desviou a atenção dos tripulantes em direção às margens.

Embora não pudesse vê-lo, ela sabia que ele estava lá, olhando para o Lago, sem conseguir enxergar através da densa névoa que pairava sobre as silenciosas águas. E sabia que ele, assim como ela, não precisava enxergar além da curva dos seus próprios olhos para perceber a presença da pequena embarcação...

Os dois homens não fizeram nenhum som ou movimento, agindo como simples coadjuvantes, sem interferir no ato que viria a seguir. Aos poucos, a moça se levantou e seguiu em direção a proa do bote.

Seus passos tocavam o convés de madeira tão suavemente que o barco nem sequer agitou a água ao redor. Completamente imóvel, ela olhou em direção ao local onde ouvira pela última vez o som do cavalo e, ritualmente, levantou ambos os braços acima de sua cabeça, entoando o encantamento que dissipava a densa bruma e abria caminho para terra firme. Ela pôde sentir a energia tomando seu corpo, percorrendo-o até concentrar-se em suas mãos. Por alguns segundos era como se pudesse sentir a névoa sólida nelas, como as pontas de uma cortina. Abaixando-as paralelamente partiu ao meio a parede de neblina à sua frente, abrindo caminho para que a luz do Sol se tornasse presente mais uma vez, tornando a margem, e o rapaz que lá os esperava, visíveis.

Por um momento, tudo que se movia em volta de ambos parou. Nenhum som de natureza alguma ousou se manifestar no mesmo instante em que seus olhos se encontraram. Os próprios homens que observavam tudo da popa do barco pareciam não mais estarem lá. Nesse espaço aberto entre os mundos, somente a existência de ambos era real. E embora não pudessem se tocar, sua proximidade era tanta que não saberiam dizer onde um terminava e o outro começava. Fragmentos de memórias se misturavam em sua volta. Todas elas tão antigas quanto o próprio chão que pisaram juntos um dia. Dentro de si, ele podia ouvi-la falar sem sequer mover os lábios.

E sentia seu sofrimento...

“Longa é nossa espera e pouco é o tempo que nos resta até que nossos mundos se separem completamente. Eu o vejo em meus pensamentos de tempos em tempos, e sei que também existo nos seus. Nunca houve um dia sequer em que não tenha tentado descobrir a razão de nossa distância e parece-me que, quanto mais procuro a resposta para essa questão, mais longe me encontro dela. Tudo o que sou e faço me foi dado levar adiante com dignidade e sinceridade. A filha, a irmã, a mulher e a esposa, que existem em mim, habitam em harmonia dentro deste corpo. A felicidade que vivo nesta vida provém de todas essas facetas e em todas elas atuei com amor e dedicação. Todavia não me foi concedido resolver esta questão e confesso que, por não saber o motivo disso, nunca estive totalmente em paz.”

O silêncio de ambos durou alguns momentos. E o vento, que até então havia permanecido como mero espectador nesse encontro, se manifestou, agitando as árvores e águas, levando consigo a resposta do rapaz, ainda imóvel na margem do lago, até a moça de cabelos escuros e olhos claros como a Lua.

“A verdade em seu lamento está presente naquilo que dá forma ao meu coração. Assim como você, eu também procurei tal resposta incansávelmente. Até descobrir que esta não existe em lugar nenhum e em todos os lugares ao mesmo tempo. E que, para encontrá-la, é preciso primeiro parar de procurar. Muitos foram os caminhos que percorri e, em igual quantidade, os papéis que desempenhei. A mim também foi dado o privilégio de conhecer o amor, a alegria e a plenitude de se viver uma vida provida de bondade e satisfação. Porém, apesar da importância de todos esses sentimentos, a verdadeira sabedoria e tranqüilidade eu encontrei nos sofrimentos e obstáculos colocados diante de mim. E, de todos esses, nenhum foi tão difícil de superar quanto essa distância que existiu, e existe, entre nós.”

Imperceptivelmente, ela assentiu com a cabeça. Notou uma lágrima escorrendo em seu rosto, desprendendo-se pele e caindo na água. O impacto criou uma leve oscilação na superfície, criando pequenos círculos que cresciam até desaparecer novamente na imensidão. E após essa breve pausa, as palavras dele prosseguiram suaves como a brisa da manhã e envolventes como um abraço...

“Aquilo que um dia nos uniu e separou, o faz de acordo com a Sua vontade. Está além do próprio amor ou justiça, e não precisa de razão nenhuma para explicar Seus atos. A Sua existência está além do espaço que há entre as pessoas e os mundos, pois tudo está presente Nisto e Isto está presente em tudo. Nossa própria vida faz parte Deste elemento e Ele está presente a cada segundo dela. Deus ou Deusa, homem ou mulher, ser ou não-ser, essa força um dia nos deu o privilégio de saber isto. Que antes mesmo de nosso primeiro choro já havíamos nos encontrado. Muito antes de nossas primeiras palavras, já sabíamos pronunciar nosso amor um ao outro. E que até mesmo antes de nos tocarmos, nossos corpos já se conheciam. Talvez, e a cada dia acredito mais nisso, nosso encontro nessa vida tenha sido somente mais um passo no que agora existe para cada um de nós. Mesmo que este tenha sido o último e o acaso nos separe definitivamente, força nenhuma no Universo terá força suficiente para apagar um dia foi. O molde de nossa existência não se encontra nem no presente e nem futuro, mas sim a um insignificante instante, um sopro de distância, no passado. Estando ou não em mundos separados, nada vai mudar o fato de que um dia caminhamos lado a lado, e a memória disso sempre estará presente, para que nunca esqueçamos o que realmente significa amar alguém. A simplicidade dessa verdade, ou a resposta se preferir, reside no fato de que realmente está além do nosso controle mudá-la e, portanto, não nos cabe achar uma razão para a mesma.”

Algo dentro dela sabia que essas palavras não vinham só dele, mas também do próprio tempo que existe para tudo e todos, sussurradas no próprio ar que respiramos, há incontáveis milênios, por algo que nunca nos será dado ver antes do momento certo. “E se esta é a última vez que nos encontramos” pensou ela “que a vida siga seu curso natural e nos leve ao encontro dessa tão merecida paz e felicidade. E há de chegar o dia em que nos encontraremos de novo, mesmo não reconhecendo um ao outro, em outra época, para relembrarmos por um breve instante que o amor vai e volta em nossos corações com a mesma intensidade, mas com contextos e personagens diferentes.”

A imagem dele ainda era a mesma de anos atrás. Parado à margem do Lago, ele ainda parecia o mesmo rapaz que um dia viveu ao seu lado, dividindo alegrias e tristezas. Afastar-se dele, na época, foi difícil, mas necessário. Já naquele tempo, ambos viviam em mundos diferentes e somente o acaso poderia ter unido pessoas tão divergentes. Ainda assim, algo nele sempre a fez suspirar de contentamento e carinho. E seja lá o que fosse já não importava mais saber o que era. O que decidiu separá-los ainda não havia mudado de idéia, e era necessário dizer um último adeus antes seguirem seus próprios caminhos.

Suas últimas palavras para ele foram “Você, a quem amei e reparti minha vida, estará presente no próprio sangue que corre em minhas veias durante toda a eternidade. Ambos fazemos parte de um ciclo que nunca pára de fluir e nos sujeita aos seus caprichos. Então fomos, somos e sempre seremos um só, amando-nos um ao outro ou não. Se isto está além do nosso controle, que assim seja. Esta é a última vez que nos encontramos antes de termos nossos mundos separados definitivamente pela neblina que existe entre eles. Sendo assim, que a última lembrança sua de mim seja isto...” e abaixou-se tocando a água do lago com o dedo.

Um redemoinho se formou timidamente entre os dois, aos poucos ganhando força, e de dentro dele um feixe de luz nasceu trazendo consigo as imagens de todos os momentos felizes que viveram juntos. Até que, por último, a lembrança dos seus rostos lado a lado se formou dentro d’água e, beijando-se, desapareceram na escuridão.

Em seus lábios, ela o pôde ver dizendo silenciosamente por uma última vez “Adeus, meu amor...”, lágrimas escorrendo pelo rosto sorridente que um dia tanto beijara. E as brumas mais uma vez se fecharam entre os dois, para nunca mais abrirem, até que a vida decidisse o contrário...

Guilherme Johnston

A mensagem nesse conto é a de que nada está sobre o nosso controle, Todos estamos sujeitos aos caprichos do acaso e nem sempre iremos encontrar tão cedo o que procuramos. O tempo dessa busca é algo que não pode ser medido, pois ela termina sempre no momento certo, nunca antes ou depois disso. Se ela leva horas, dias, semanas, anos, séculos ou milênios para chegar ao fim, não nos é dado saber quando e nem como. Mas a nós é dada a escolha de estar sempre buscando por algo mais, um sonho (seja ele qual for) ou um amor de verdade. Caminhem sempre na direção de seus medos, pois é neles que está o verdadeiro futuro. E, acima de tudo, sejam sinceros consigo mesmos...

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